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“A liberdade e seus dissabores”, por Theodore Dalrymple

liberdade de expressão

Quando os nazistas marcharam Viena adentro sob a delirante acolhida da multidão, e não muito antes de a Gestapo o ter escoltado para longe de seus recintos, por assim dizer, Freud pôs duas palavras lapidares em seu diário: Finis Austriae. Desde então, é bem verdade que a Áustria não tem figurado com grande destaque (que dirá de maneira positiva) nem mesmo no horizonte mental das pessoas mais instruídas da Europa, quanto mais daquelas que vivem na América do Norte. A despeito de sua grande beleza, de sua herança histórica e artística maravilhosa e da conquista de uma prosperidade imensa e quase universal, uma sombra paira até hoje sobre o país – e pelas razões mais evidentes.

Quando penso na Áustria moderna, eis o que me vem à mente: cenas do filme O Terceiro Homem; o escritor Thomas Bernhard, que de tal maneira menosprezou sua terra natal que determinou, em seu testamento, que nenhum de seus livros poderia ser publicado lá; e o diplomata Kurt Waldheim, que teve de ocultar o próprio passado por razões igualmente óbvias. Se forçar a barra, recordo-me também de um artista modernista cujo brilhantismo vinha da originalíssima ideia de cobrir tudo com sangue; e de Elfriede Jellinek, vencedor do prêmio Nobel cuja visão de seu próprio país não foi mais lisonjeira do que aquela de Bernhard. Tudo isso é bastante injusto, não há dúvidas, mas raras são as vezes em que somos justos com relação a algo.

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Viena, Austria. [Foto:12019/Pixabay]

Há não muito tempo, porém, Viena esteve mais uma vez nos noticiários – ou ao menos num dos jornais britânicos. De lá foi noticiado o caso do transexual mais jovem do mundo: outrora Tim, Kim começou a se submeter a um tratamento de mudança de sexo aos doze anos de idade. Ao que parece, Tim (o nome da época) convenceu os médicos de que nascera no corpo errado. A despeito de sua idade, suas palavras foram tomadas à risca.

No mesmo dia em que a matéria saiu, a BBC me telefonou para saber se eu gostaria de comentar o caso no programa World Service. Quando me perguntaram o que diria, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a probabilidade de os médicos se tornarem vítimas de ações judiciais em algum momento futuro. A busca de indenizações às vezes parece ser o anseio mais elevado do Homem (ou deveria dizer pessoa?) moderno. Afinal, o Homem nasce feliz, mas em toda parte se encontra triste: algum culpado por isso deve existir, e, como bem disse o jingle de um anúncio de advogados que certa vez ouvi num táxi: “Lembre-se: onde há culpa, há processo”.

Não obstante, não fiquei muito entusiasmado com a possibilidade de participar do programa – e por mais de uma razão. Embora acredite que a concisão seja algo quase celestial e que todos deveriam se expressar com o mínimo de palavras possível, a destilação de respostas, na forma de pequenas frases de efeito, a questões filosóficas difíceis não é algo necessariamente propício a um debate e uma argumentação de qualidade. De modo geral, a BBC não costuma gostar de debates longos, na crença de que seu público possui a capacidade de atenção de… Bem, eu ia dizer um menino de doze anos, mas é evidente, como vimos, que os meninos de doze anos são hoje maduros o bastante para tomar as decisões mais importantes da vida. Certa vez, a emissora me convidou para o que dizia ser “um longo debate” sobre algo que me parecia importante. Quando, porém, questionei o que entendiam por “longo”, ouvi como resposta: “Seis minutos”. Então, como eu dissesse que seis minutos não me pareciam constituir tempo muito longo, disseram-me que era longo o bastante para eles. Longo, afinal, é um termo relativo. Quando quis saber o número de convidados que tomariam parte nesse longo – praticamente interminável – debate, responderam que seriam três (sem contar o apresentador), o que me deu a entender que o vencedor – deve sempre haver um, afinal – seria aquele que conseguisse gritar mais alto no microfone e utilizar uma voz mais intimidadora. Se T. S. Eliot estivesse vivo hoje, creio que mudaria seu famoso verso para: “O gênero humano não pode suportar tanto debate”.

A BBC World Service é a maior emissora de notícias do mundo. [Foto: Peter Macdiarmid/Getty Images]

Encontrei, felizmente, uma boa desculpa para não estar no programa, muito embora me pareça um pouco estranho ter sentido a necessidade de dar uma desculpa. De todo modo, havia um jantar agendado para a hora do evento, o que me isentou de qualquer senso de obrigação. O alívio que senti foi quase físico.

Imediatamente, qual um intelectual profissional, comecei a analisar os motivos que estavam por trás disso. A resposta não me era nem lisonjeira, nem reconfortante a respeito de nossa liberdade.

Caso viesse a dizer o que bem achava, sem impedimento algum, acabaria expressando o que, suspeito eu, também acha a vasta maioria das pessoas: que há algo de grotesco, e até mesmo repugnante, nessa ideia de mudança de sexo, quanto mais no caso de meninos de doze anos. Sensação de repugnância não é um argumento moral completo, claro: é necessário algo mais profundo. Ainda assim, a intuição de que determinada ação ou política é um equívoco completo representa o começo, quiçá até o final, da reflexão moral.

Se eu for, porém, bastante sincero, a verdade é que havia certo quê de medo ou pusilanimidade por trás do alívio que senti por não ter de falar ao vivo sobre aquele assunto. Caso o tivesse feito, teria me sentado frente a frente com um defensor do transexualismo (ao menos foi o que me dissera o produtor), e para ser fiel a mim mesmo e minhas convicções precisaria ter dito, diante de um público de milhares – quiçá milhões – de pessoas, que a meu ver o que ele/ela fizera fora algo fundamentalmente egoísta e antissocial. Conhecendo como conheço o formato dos programas de rádio, eu não teria conseguido fundamentar minha opinião, e em geral sou alguém que reluta em ofender gratuitamente outra pessoa – em parte por covardia moral e, em parte, por acreditar que uma ofensa assim é algo mau em si mesmo.

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“Os transexuais formam hoje um grupo de pressão considerável.” [Foto: Divulgação]

No entanto, eu também sabia que os transexuais formam hoje um grupo de pressão considerável – não, porém, em virtude de sua quantidade, que é insignificante, mas por conta do apoio daquela parcela da intelligentsia que vê a dissolução das fronteiras, se não como obra divina propriamente dita, ao menos como obra dos moralmente eleitos. Eles vêm lutando contra as fronteiras há anos.

Bem, mas e daí? Nós não vivemos numa sociedade em que é preciso temer uma batida na porta à meia-noite por ter ido longe demais na expressão de opiniões equivocadas. Ainda assim, os grupos de pressão e seus aliados têm uma forma própria de vingar a manifestação de visões diferentes das suas. Eles conseguem retratar seus opositores como gente irracional e intolerante, uns velhuscos com o cérebro do tamanho de uma ervilha.

E a verdade é que provavelmente estão dispostos a colocar, nisso, mais empenho do que aquele que lhes é contrário está disposto a colocar na defesa de sua opinião, uma vez que este último não é, como seus oponentes, alguém monomaníaco ou restrito a uma só questão. O fato é que eu não ligo muito para o transexualismo, e portanto não queria me submeter ao opróbrio público dos bem-pensantes manifestando-me sobre ele. Afinal de contas, o céu não cairá se um menino austríaco de doze anos passar por uma mudança de sexo. Adaptando um pouco o que declarou Adam Smith, há sempre uma boa dose de ruína numa civilização.

Desse modo, notamos como uma mudança social contrária ao que a maioria da população deseja pode ocorrer: não há quem se oponha a ela com grande vigor. Exceto para seus beneficiários, a mudança individual não importa tanto, e o preço que pagamos por nos opormos é alto demais. Precedentes são estabelecidos e, uma vez estabelecidos, seguidos; não há caminho de volta. Os omeletes não podem ser ovos novamente. Ou, para mudar a metáfora, o gênio nunca volta para a lâmpada.

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“No passado, vinha dos governos a maior ameaça à liberdade de expressão.” [Foto: Divulgação]

No passado, vinha dos governos a maior ameaça à liberdade de expressão; hoje, é o tipo de pressão social que descrevi acima o que põe em risco o debate. Dei-me conta disso quando escrevi um artigo sobre uma doença chamada síndrome da fadiga crônica, questionando ali – em termos não muito brandos, devo reconhecer – a inabalável opinião daqueles que dela padecem: a de que se trata de uma doença viral, e não psicossocial.

O que eu não tinha percebido então era que aqueles que sofriam de fadiga crônica eram incansavelmente ativos na defesa do modo como viam sua enfermidade, sem admitir qualquer outra possibilidade. Tão logo o artigo veio a público, comecei a receber protestos pelo telefone e pelo correio, muitas vezes em linguagem desagradável e abusiva; meu hospital recebeu telefonemas solicitando minha demissão; até mesmo um ministro do governo foi contatado.

Quando conversei com outros jornalistas que haviam escrito ou falado de maneira semelhante sobre o tema, descobri que o tratamento que eu recebera nas mãos dos cronicamente fatigados fora até brando, talvez em virtude de minha obscuridade e irrelevância. Sofreram de modo particular os jornalistas de televisão, que por muito tempo receberam ligações no meio da noite, enxurradas de insultos, etc. – com frequência, por meses a fio, de modo a terem o sono cronicamente afetado. Não surpreende que jamais tenham desejado tocar no assunto de novo: para eles, afinal, aquele era apenas mais um entre muitos assuntos, enquanto para os protestantes tratava-se do assunto dos assuntos. Mesmo pesquisadores relativamente discretos, que escreveram em termos muito mais reservados, disseram-me que, caso se desviassem o mínimo que fosse da linha proposta pelos cronicamente fatigados, recebiam enxurradas de protestos. Um deles, professor de destaque, afirmou que se sentira quase sitiado.

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Segundo o autor, a síndrome da fadiga crônica consiste numa doença viral, não psicossocial – esclarecimento que acabou lhe rendendo uma chuva de protestos. [Foto: Gerd Altmann/Pixabay]

Desse modo, o argumento passava por falta de oposição e uma única perspectiva era autorizada a adentrar a consciência pública. O que está em jogo não é se os cronicamente fatigados estão certos (é possível que suas opiniões um dia sejam confirmadas), mas se deveriam tentar tolher, dessa maneira, um debate legítimo.

Sejamos francos: poucos nunca sentiram a tentação de calar aqueles tolos e patifes que possuem um pensamento diferente do seu. Afinal, ou eles são estúpidos, ou são maus (ou ambos, é claro). Se os meios de silenciá-los estivessem ao nosso alcance, ficaríamos seriamente tentados a dar-lhes uso.

Quem de nós escuta sem impaciência, ou até mesmo sem ira, os argumentos de nossos oponentes? Se você porventura acha que o aquecimento global é resultado de atividades humanas, consegue tolerar os argumentos claramente tortos daqueles céticos que se encontram a serviço, ou ao menos mentalmente escravizados, pelas multinacionais poluentes? Ou ainda, caso você acredite que tudo o que Al Gore quer é aumentar o poder dos governos, de preferência tendo a si mesmo no comando do maior deles, é possível ouvir, sem nenhum aumento dos batimentos cardíacos e da pressão sanguínea, o que dizem os climatologistas que insistem em que somos nós – nós homens, digo – os responsáveis pela elevação da temperatura global? “Que é a verdade?”, disse um zombeteiro Pilatos, que não ficou à espera da resposta.

La Rochefoucauld declarou que, na maioria dos homens, o amor à justiça é tão somente medo de ser injustiçado. Por analogia, o amor à liberdade de expressão não passa, neles, de medo de ser calado. Fossem essas pessoas mais fortes do que são, teriam apenas monólogos, a mais agradável de todas as formas de discurso. Quem de nós jamais tomou parte numa conversa tendo, como principal preocupação, o que falaria em seguida, sem se importar com o que os outros diziam e esperando apenas uma pausa em que fosse possível interpor suas maravilhosas palavras?

A ameaça à liberdade de expressão, portanto, não é inerente apenas aos governos, mas também a nossos corações. E, no mundo moderno, uma ameaça muito singular nos é imposta pelos bem-pensantes monomaníacos que se unem para formar grupos de pressão. Ao declínio da grandiosa ideologia do socialismo, não vimos seguir-se o declínio da ideologia, e sim o advento das microideologias. A ideologia foi dividida em fragmentos e privatizada, por assim dizer, enquanto permanece igualmente ideológica. Além disso, poucos prazeres são maiores do que aqueles que advêm do exercício do poder, sobretudo quando em nome de um bem maior. Ser ao mesmo tempo poderoso e virtuoso: que deleite!

 

O ensaio “A liberdade e seus dissabores” faz parte do livro Qualquer Coisa Serve, de Theodore Dalrymple, publicado pela É Realizações Editora. Garanta já seu exemplar clicando aqui.

 

 

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