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Criação Consumada e o Livro do Apocalipse – Algumas Questões sobre Ordem, Desordem e o Gênero “Apocalíptica”

michealangelo apocalise

(Contribuição de James Alison para um workshop sobre o Apocalipse ocorrido em Palo Alto, em 19 de novembro de 2018).

Com tradução de Maurício G. Righi

Meus sinceros agradecimentos por me deixarem participar, com vocês, desse workshop. Sou um teólogo de temperamento clássico e interesses sistemáticos, portanto, alguém para o qual os assuntos em discussão são confessionais, isto é, investigados a partir de dentro. Formam aquilo que Alison McQueen especificou, apropriadamente, como desenvolvimento e compartilhamento de um imaginário, pelo qual as pessoas vivem. Assim sendo, é um privilégio espreitar certos usos da linguagem e temas teológicos à medida que estes são levados para o interior de campos distintos e entrelaçados às discussões atuais sobre catastrofismo, o efeito de nosso potencial nuclear, o impacto disso em nossa imaginação e, também, outras mudanças em nosso mundo, as quais são vistas como ameaçadoras, alarmantes ou mesmo devastadoras, contingentes ou inevitáveis. Por vezes, para um teólogo sistemático, os modos como os termos teológicos são usados, em diferentes disciplinas, soam como uma orquestração estranhamente estreita de uma sinfonia muito mais rica. Mas, por outro lado, como ocorre durante a leitura do livro de Alison, fico espantado como uma lógica interna comum parece se afirmar ao longo do tempo.

Gostaria de iniciar chamando a atenção para uma novíssima leitura do Livro do Apocalipse, feita por Margaret Barker. Na realidade, trata-se de uma leitura muito antiga, frente a qual certas ferramentas intelectuais relevantes tinham ficado fora de ação por séculos. Barker mostra que aquilo que denominamos por linguagem apocalíptica, e o mundo das visões/oráculos, anjos e tribulações nela inclusos, são derivações das Visões do Primeiro Templo, conforme foram usadas e preservadas por escribas sacerdotais durante o período do Segundo Templo. Esses autores, reunidos em grupos diversos, protestavam, dentre outras coisas, contra o tipo de religião que os ex-exilados “judaítas” trouxeram consigo de Babilônia. As visões incluíam memórias e profecias concernentes aos Rei-Sacerdotes ungidos, cujo culto real fora central no Templo de Salomão. Para esses descontentes, o Segundo Templo era impuro e, consequentemente, Jerusalém não seria mais uma cidade santa. Citando Barker: “A prostituta do Livro do Apocalipse não era Roma; mas fora Jerusalém desde a época de Ezequiel, mesmo que intérpretes posteriores da profecia tenham identificado Roma como a prostituta de sua própria época”.

Entre as evidências dessa leitura, está o modo como os mesmos incidentes são descritos nos capítulos que levam à derrubada da prostituta, conforme descrito por Josefo [Flávio Josefo 37 – 100 EC] em seu relato sobre o cerco de Jerusalém, embora, obviamente, valendo-se de uma linguagem distinta. Todavia, a razão que me leva a explorar o tema não é tanto um envolvimento exegético com o texto do Livro do Apocalipse. Trata-se, na verdade, de destacar um ponto que explora a perda de ferramentas intelectuais relevantes, relativas à linguagem e imagens implicadas [no Apocalipse]. Chamamos essa linguagem e imagens de “apocalíptica”, uma vez que a nossa principal fonte a essa linguagem, ao longo dos séculos, tem sido o Livro do Apocalipse, ou seja, o Livro da Revelação, o descortinamento dado [revelado] por Jesus a João. Assim, linguagem e imaginário apocalípticos são coisas que conhecemos por associação com esse livro, o qual nos familiarizou com essa tipo linguagem e imaginário; e assim podemos olhar, retrospectivamente, baseados no Livro do Apocalipse, para a “apocalíptica” do Segundo Templo; e podemos avançar, do mesmo livro, para a história medieval e moderna. Todavia, se a apreciação de Barker estiver correta, e, desconheço até o momento explicação melhor, a linguagem [apocalíptica] está mais bem ancorada ao Templo. Nesse sentido, o primeiro Templo, o Templo de Salomão, é o padrão ou tipo. O segundo Templo, com mais ou menos frequência, funciona como antipadrão, porque é visto como exemplo contrário ao que o Templo deveria ser, tendo sido estabelecido por sacerdotes corruptos e suas famílias [clãs], os quais “recusaram a Sabedoria”, tornando-se cegos. Finalmente, temos a previsão de um futuro sem Templo. Aqui, um imenso Santo dos Santos (cujos lados têm aproximadamente 2400 quilômetros de extensão) tornando-se co-extensivo a uma cidade sem Templo, anunciando o cumprimento vindouro daquilo que fora, o tempo todo, o propósito do Templo. A linguagem utilizada é, portanto, visionária, em vez de “apocalíptica”, principiando-se na visão do Santo dos Santos em Isaías 6, passando pelas visões do Trono e Templo de Ezequiel, e chegando às visões em Daniel. Os elemento que chamamos de “apocalípticos” se fazem notadamente presentes: pragas, monstros, e assim por diante, dominando nossa atenção por sua extravagância. Mas, por outro lado, estes compreendem um subconjunto bem específico em relação à visão central do Templo.

Benjamin West
Morte em um Cavalo Pálido, por Benjamin West (1738 – 1820, Estados Unidos).

Tudo isso ajudaria a explicar o motivo pelo qual linguagem e imaginário do Livro do Apocalipse tornaram-se tão rapidamente opacos e de difícil compreensão, uma vez que requerem um conhecimento íntimo sobre o funcionamento do Templo, suas celebrações principais e, sobretudo, sobre a imaginação sacerdotal que se manteve preservada simplesmente pela participação regular dos grupos familiares, os assim chamados vinte e quatro “turnos sacerdotais”, os quais foram estabelecidos por Salomão, mantendo todo o sistema em funcionamento. Sabemos, por exemplo, que tanto João Batista quanto João, o Discípulo Amado, ambos, eram membros dessas famílias [sacerdotais]. No entanto, dentro de uma geração após a destruição do segundo Templo, em 70 AD, não havia mais memória viva que recuperasse o dia a dia de trabalho no Templo. Certamente, os tradutores para o grego do texto original em hebraico ou aramaico, línguas que estão por trás do Livro do Apocalipse como hoje o conhecemos, já haviam perdido, ao menos em parte, o imaginário correspondente [ao Templo], uma vez que, em várias passagens, se equivocam, ou fornecem as vogais erradas no que toca a palavra original que traduzem, de modo que temos a tradução de um termo como “coxa”, em vez de “estandarte”, e, em muitas ocasiões, lemos “vi, então, outro anjo”, em vez de “então o (mesmo) anjo”. Todavia, com o imaginário do Templo consideravelmente restaurado (e esse tem sido o trabalho da Barker ao longo de várias décadas), temos hoje acesso a um sentido muito mais rico ao que se passa no texto.

Vou pedir-lhes certa complacência para que me permitam elaborar uma breve visão panorâmica do imaginário do Templo (e me refiro ao mundo de imagens, associações, práticas e narrativas que estruturam e dão sentido a um campo imaginativo compartilhado), e o farei não como mera informação, mas no sentido de que vejam a relevância central desse imaginário à questão da relação entre ordem e desordem, a qual me pareceu estar no centro tanto da discussão proposta por Alison McQueen quanto em discussões anteriores, amplamente debatidas por scholars ligados ao pensamento de René Girard, tais como Jean-Pierre Dupuy e Wolfgang Palaver, aqui presentes.

O primeiro ponto a ser sublinhado, uma vez que é ao mesmo tempo óbvio e fundador, é o fato de o culto hebraico ter sido e ainda ser maciçamente orientado-pelo-Criador. Tudo relacionado ao Templo orientava-se do mesmo modo. O Templo, em si mesmo, era visto como microcosmo da Criação. Isso era transmitido do Santo dos Santos, espraiando-se aos salões anexos. O Santo dos Santos, um cubo perfeito, era considerado como realidade que estava “fora”, “anterior” à Criação e onde apenas Deus está, juntamente com Seus santos anjos e a Sabedoria, uma divindade feminina ou aspecto da divindade, e com quem Deus criou tudo o que existe. Por definição, isso existe “antes” do espaço-tempo. Formas padrão de se referir a esse “dia zero” incluíam frases do tipo “antes da fundação do mundo” como também “para todo o sempre”, “em saecula saeculorum”, e assim por diante. No imaginário do Templo, ao mover-se para fora do Santo dos Santos, tem início, no véu do Templo, a criação material. Esse véu ininterrupto, amparado em quatro colunas de acácia, significava os princípios da materialidade, e quando se movia para fora do Lugar Santo, atravessando o véu, entrava-se na criação material. Em primeiro lugar, encontrava-se o candelabro, indicando as luzes, e, por conseguinte, o primeiro dia, e, depois, outras esculturas e sinais, os quais indicavam os diferentes dias da criação, familiarizados no Livro de Gênesis, até que, movendo-se ainda mais, os humanos entravam em cena.

carra
O Cavaleiro do Apocalipse, de Carlo Carrà (1881 – 1966, Itália).

Compreendia-se que tudo aquilo que fosse “realmente real”, usando, no caso,  uma linguagem descuidada (e o imaginário do Templo precedeu Platão por muitos séculos) [7] estava com o Criador, ao passo que tudo aquilo que estivesse, assim por dizer, do nosso lado do véu, participava, em certa medida, daquela realidade que poderia cantar a Glória de Deus, uma vez que a Sabedoria a trouxera ao plano da existência precisamente para esse fim. Com efeito, a realidade criada, tudo que sabemos, significava uma realidade secundária, uma cópia, imitação ou imagem da realidade primária. Uma cópia que, quando tudo está bem, alinhava-se com o real por meio da adoração, por meio dos humanos, particularmente, dos sacerdotes, uma vez dotados de sabedoria, assim bem desempenhando, aqui embaixo, as coisas que são completamente desempenhadas no céu. Apreendemos um sentido disso, quando, no Apocalipse, “o céu é enrolado como um pergaminho”: estamos no interior de um modo de falar sobre uma realidade secundária.

As duas celebrações centrais do primeiro Templo compreendiam a entronização ou Ascensão da figura do governante sacerdotal ungido, à semelhança de Salomão (que fora coroado Rei e Deus), e a Festa da Expiação. Este último ritual, cuja antiga origem ultrapassa, em muito, quaisquer listas de pecados correlacionados à expiação, era muito mais direcionado à restauração dos laços da Criação do que qualquer outro motivo. A ideia por trás disso era a de que, num mundo criado, existencialmente orquestrado por Deus e pela Sabedoria de Deus, tudo aponta, sinaliza, reflete, libera, a glória de Deus; e aqueles nos quais a Sabedoria estabelece morada, tornam-se capazes de enxergar isso. Todavia, com o passar do tempo, os efeitos cumulativos das transgressões humanas promovem deformações pela vaidade, futilidade em tudo o que é. As coisas não apontam mais para aquilo que as ultrapassa, rodopiando em queda entrópica, dirigindo-se, monotonamente, a lugar nenhum, desviando-se do alvo; os humanos também se tornam cegos, abatidos pelo tédio e por um senso de insatisfação permanente. O ritual da Expiação era o momento em que o Criador viria à Criação (como Sumo Sacerdote Ungido, portador do nome YHWH em sua pessoa), oferecendo a si mesmo em sacrifício (como um cordeiro), de modo a desbloquear todos os fluxos obstruídos das coisas, desembaraçando os nódulos que aprisionam as coisas, desacorrentando todas as coisas e pessoas acorrentadas, guardando e protegendo os eleitos do Criador, ameaçando punir os seus inimigos para, finalmente, banir Azazel (como cordeiro ou bode idêntico) para o deserto ou para as profundezas. Assim, toda a Criação era restituída em sua Glória, fundamentalmente viva, uma vez mais, e a visão da Sabedoria restaurada a todos.

 Pieter Bruegel
A Queda dos Anjos Rebeldes, de Pieter Bruegel (c. 1525–1530 – 1569, Holanda).

Por favor, lembrem-se de que o elemento-chave para a compreensão desses rituais era saber que aquilo que estivesse sendo ritualizado aqui embaixo, o evento ritualístico no Templo, ainda não era a coisa real. A coisa real fora encenada no céu. E as visões dadas aos sacerdotes e profetas envolviam elementos dessa realidade celeste inenarravelmente completa, fora do tempo e do espaço. Essa totalidade fora vislumbrada por profetas como Isaías, Ezequiel e Daniel, como algo que estava a caminho, que se dirigia ao mundo e que, finalmente, chegaria como o terrível “dia do Senhor”, a respeito do qual fala Zacarias, e que levaria o Templo ao seu fim. O que temos no Livro do Apocalipse é o relato de como essa totalidade, emergindo do Lugar Santo, interage com a realidade terrestre e sequencialmente estruturada na forma da vinda de Jesus, seus ensinamentos, morte e ressurreição, e na exploração contínua de suas profecias referentes à destruição do Templo de Jerusalém, em 70 A.D. Assim a “totalidade” começa a se tornar compreensível como uma série de narrativas humanas, dependentes de tempo e lugar. Cada um dos sete “selos” abertos pelo Cordeiro morto-e-ressuscitado é uma dimensão dessa interação narrativa entre a realidade celeste e turbulência terrestre.

Uma vez que a totalidade é maior que a descrição de qualquer evento humano isolado, as realidades humanas envolvidas podem ser sobrepostas uma sobre a outra. Logo, na morte de Jesus, por volta do ano 28 A.D., ele pronuncia o termo: “está consumado”. A voz forte que sai do Templo, do Trono, enquanto o sétimo anjo despeja sua taça pelo ar, agora no ano 70 A.D., diz: “está realizado”. São, ambos, termos iguais, à medida que totalidade alcança seu máximo impacto nos assuntos humanos. O mesmo pode ser dito a respeito das perseguições, durante o período dos macabeus, como também dos anos imediatamente anteriores ao desastre de 70 A.D. – as mesmas bestas com chifres podiam ser vistas em operação em diferentes “vestimentas” imperiais: helenística ou romana. Como na época de Daniel, a mesma besta poderia ser os gregos, os assírios ou os babilônios. E foi isso que permitiu aos leitores posteriores, particularmente após a Reforma, imaginar ocorrências de abrangência semelhante aplicadas a Roma, com suas setes colinas, como já fora aplicado a Jerusalém, cuja descrição de ter sido erguida sobre sete colinas era uma referência tradicional à sua perfeição, em vez de caracterizar uma infundada alegação geográfica, sete sendo o número da perfeição.

Todavia, voltando aos assuntos mais próximos a este estudo. Gostaria de levantar alguns poucos pontos em cujo enredamento, com o nosso tópico de discussão, espero aprender mais ao escutar vocês.

O Juízo Final
O Juízo Final, de Hans Memling (1430 – 1494, Alemanha).

O primeiro é que a realidade central no Livro do Apocalipse, a visão celestial do cordeiro sacrificado, o qual se torna apto a receber o poder para abrir os selos, indica a totalidade (completude) da Expiação como já tendo sido executada “antes da fundação do mundo”. Todo o resto flui disso, pois a besta, Azazel, que é finalmente lançada ao esquecimento, pouco antes do término do livro, é justamente a besta para a qual o segundo cordeiro [ou bode] – aquele ao qual nos referimos como bode expiatório – pagava tributo no ritual da Expiação. Mas, todo esse imaginário tem como seu ponto central enfatizar que a criação foi finalmente completada, consumada, pois o projeto do Criador foi finalmente realizado. Tudo isso aconteceu e foi levado à completude. E que a totalidade e a completude vem sendo certamente trabalhadas na terra, ainda que lentamente. Sublinho esse ponto, uma vez que tendemos a separar “Criação” e “Redenção” em algo que acontece num passado remotíssimo (Criação), estabelecendo a ordem; e algo que veio nesse ínterim (Redenção), restaurando uma ordem que foi quebrada de algum modo. É fácil para nós atribuir cada “momento” a uma “pessoa” diferente da Santíssima Trindade, de modo que a Criação é obra do Pai; a Redenção, obra do Filho, de uma forma que as tornam francamente diteísta. Isso nos faz perder o que de mais importante está ocorrendo no Livro do Apocalipse, a saber, que a totalidade da criação já foi instanciada, inaugurada no meio de uma série de atos históricos (Redenção), os quais terminaram. Todas as turbulências e suas decorrências são distrações.

Por exemplo, toda série de pragas que se abate contra a terra se resume à questão de que se “consuma a ira de Deus”: em outras palavras, essas são as pragas prometidas, no final de Levítico, como castigo pela incredulidade do povo. Mas, não haverá outras. Acabou. Trata-se da forma como o narrador levanta uma questão metafísica. Você não diz “Deus não castiga”, mas sim que “Deus, consumando seu furor, pôs fim, terminantemente, aos castigos de Deus”, e o fez por meio dessas pragas que cumprem [a profecia em] Levítico. Em vez de propor a declaração metafísica de que “não há violência ou vingança em Deus”, conta-se uma história irônica. Nesse enquadramento inicia-se dizendo: “O Leão de Judá conquistou”, mas ao olhar para a coisa, percebe-se que aquele que foi indicado como “o Leão de Judá” se faz presente como cordeiro imolado e, posteriormente, toda violência será descrita como “a ira do cordeiro”. Qualquer um pode entender a ira de um leão triunfante, mas a ira que flui de um cordeiro é – claramente – uma subversão a partir de dentro daquilo que se entende por ira, especialmente ao se saber que o cordeiro foi imolado. Tamanha ironia é feita sob medida à leitura girardiana, na qual a vítima inocente, uma vez revelada como tal, desfaz a capacidade imemorial de se manter ordem por meio da violência, o que, por sua vez, reconduz a violência, mas agora sem nenhum alvo específico, uma vez que o sacrifício parou de funcionar no nível transcendente, e nunca mais funcionará nesse nível. A violência dirige-se então à expiação, a qual se torna visível – enquanto expiação vitimária – àqueles que dela participam, e não pode mais ser resolvida por meio do sacrifício, mas tão somente pela mudança do coração.

O Juízo Final
O Juízo Final, de John Martin (1789 – 1854, Inglaterra).

Portanto, o Criador, para o qual o princípio e o fim (A e Ω) são o mesmo, completou a criação no meio de todo mal e turbulência que se faziam presentes nos eventos que levaram à destruição do segundo Templo e ao saque de Jerusalém. O ponto central dessa visão é para que não nos distraiamos. Esse era o ponto central aos ensinamentos do próprio Jesus, como na passagem intitulada “pequeno Apocalipse” no Evangelho de Marcos e em seus paralelos nos sinóticos. Nessas passagens, profetizam-se a destruição do Templo, guerras, revoluções, turbulências, pragas e fome. Mas, a parte central do ensinamento é: não permitam que as suas mentes se fixem nessas coisas, desviem o seus olhares, não atribuam nenhum tipo de significado divino a nada disso. Saiam, fujam, não se deixem apanhar por essas coisas. A verdadeira vinda do filho do homem será como um ladrão noturno, que chega quando não se espera; portanto, sejam vigilantes. Jesus diz então que ninguém sabe se ele virá ao entardecer, à meia-noite, ao canto do galo ou de manhã. Desse modo, e de forma notória, ele oferece a estrutura dos eventos que terão início em alguns dias, com ele próprio no centro se entregando aos discípulos na Última Ceia (ao entardecer), sendo entregue por Judas, à meia-noite, sendo traído e (entregue) por Pedro ao canto do galo, e sendo entregue pelo Sinédrio aos romanos, ao amanhecer.

Meu ponto, assim creio, é que tanto nos Evangelhos quanto no Livro do Apocalipse, o que temos é algo distinto do mundo binário, geralmente, pressuposto pelos que estudam o gênero “apocalíptica” (os quais apontam, corretamente, para os vários binarismos presentes nesse tipo de literatura: céu-terra, de dentro-de fora, luz-escuridão, pureza-impureza, e assim por diante). Em vez disso, proponho que o imaginário seja ternário, e o é de tal modo que os que se prendem aos binarismos não conseguem percebê-lo. Esse terceiro ponto é algo que emerge. É como se todos estivessem de tal modo obcecados com a ventura de suas pequenas flotilhas, reciprocamente envolvidas em escaramuças no meio de ventos e ondas significativos, que não percebem a lenta mas progressiva emergência de um gigantesco submarino no meio deles, cujo lento elevar-se provoca, acidentalmente, a criação de uma série de ondas, redemoinhos e outras correntes, de modo que as embarcações, totalmente absortas em seu próprio jogo, não são capazes de perceber, no meio de si próprias, a presença do alterador do jogo.

Conforme coloca Alison McQueen, não sabemos como Ticônio lia o Livro do Apocalipse, mas Agostinho bem pode ter se envolvido em algo muito diferente de um retrocesso, ao contrário do que se pensa, ao minimizar o significado da Queda de Roma. O Livro do Apocalipse compreende muito bem que o tempo chegou ao seu término com a queda de Jerusalém, que a violência e o mal perderam para sempre toda transcendência (a visão disso no Apocalipse é claramente idêntica à de Jesus no Evangelho de Lucas, a qual deu a René um dos títulos de seus livros – Eu Via Satanás Cair do Céu Como um Relâmpago), mesmo que, como um rabo separado de um lagarto, ela continue a se revolver por um tempo. O Apocalipse compreende que nunca mais haverá uma cidade santa genuinamente estabelecida, a antiga função de Jerusalém, com seu Templo e sua opressiva estrutura econômica, a qual o mantinha em funcionamento. Essa função foi amarrada a uma mó e lançada ao mar. O imaginário da mó compreende o modo de o narrador dizer que foi “fundamentalmente perdida e aniquilada, sem remanescentes”, ao contrário de ser simplesmente enterrada, onde remanescentes poderiam ser encontrados e até mesmo reanimados.

A destruição do Templo
A destruição do Templo de Jerusalém, de Nicolas Poussin (1594 – 1665, França)

Temos agora duas valências simultâneas do que chamamos de tempo. Na primeira, a criação se abre a uma já inaugurada eternidade, a vida dentro da qual há o envolvimento de perceber-se estirado pela esperança à medida que aprendemos a construir, amparando-nos mutuamente, descobrindo o que realmente é – o que a aventura de ser criado realmente significa. Nesse ínterim, resistimos ao permitirmo-nos distrair pela idolatria de significado e ligada a eventos aparentemente significativos. Esse é o motivo pelo qual “resistir ao maligno” tem o mesmo significado de “não resistir ao mal”, pois parte do glamour dispersivo do maligno é o fato de nos inclinar a derivar significado e identidade em nosso envolvimento em “resistir ao mal”, quando tudo o que faz é nos tornar no reflexo de uma miragem. Em vez disso, paciência, perseverança e testemunho à verdade sem preocupação com prováveis perdas são primordiais. Enquanto isso, na segunda dessas duas valências, temos o tempo binário da futilidade, violência e desordem com sua falsa bondade, sua falsa maldade, seu falso significado, e assim por diante, em que nada tem significado real, e que está sempre espiralando vaidosamente para baixo.

Penso que estou certo ao dizer que é essa qualidade de tempo, a qual se seguiu à queda de Jerusalém, que Agostinho identificou como “secular”, uma em que dois tipos bem distintos de realidade, incomensuráveis, ocorrem simultaneamente: a vinda do Reino, visível somente por sinais pontuais; e a espiral descendente e entrópica do tempo.

O ponto final que eu gostaria de salientar, com base nesse entendimento da relação entre os reinos celestial (fora do tempo-espaço) e terrestre, é um para o qual vou realmente precisar da ajuda de vocês. Caso eu esteja certo (e reconheço que me falta destreza filosófica para descrever isso propriamente), temos no Apocalipse um relato de como Criação e Expiação [Reparação] são a mesma coisa. Isso nos parece inconcebível, uma vez que tendemos a imaginar o “ser” como anterior a qualquer “queda do ser”, a qual possa solicitar uma reparação. De modo que, tipicamente, nos relatos cristãos clássicos, primeiro temos a criação e, depois, em segundo lugar, vem a expiação-reparação; portanto, a primeira como realidade primordial, estabelecedora da ordem e a segunda como realidade auxiliar, com base na qual se pressupõe desordem e o esforço por restaurar-se a ordem. Não obstante, o que estou descrevendo sugere a simultaneidade entre criação e reparação, uma posição auxiliada pelo fato de o verbo hebraico em questão “criar novamente” e “renovar” ser o mesmo verbo – chadash.

michealangelo apocalise
O Juizo Final , Michelangelo Buonarroti, 1535-1541, Capela Sistina.

Todavia, algo mais está implicado na forma como lidamos e pensamos com a ordem e a desordem, com os dois vindo à existência (diferentes formas de existência) ao mesmo tempo. Se Criação e Expiação [Reparação] são a mesma coisa (e isso está pressuposto nos textos do Novo Testamento, quando estes se referem a Jesus como Criador, assim como no relato de Paulo sobre a “criação submetida à vaidade”, até que seus filhos possam ser revelados), então a reparação seria a coisa mais próxima que temos como analogia para criação. Não há, por definição, nenhuma atividade humana que seja estritamente análoga à Criação: mesmo as analogias bíblicas são obviamente carregadas, com aquela do oleiro e do barro. Mesmo quando na primeira pessoa (“E Deus disse” em Gênesis), ainda que enormemente mais sofisticado e sutil como imagem (falar a existência de algo), a narrativa não oferece insight ao relacionamento entre ordem e desordem. Todavia, passamos a ver a Expiação, o modo como o Ungido entregou-se à morte no meio da violência, como uma forma de se abrir à totalidade numa ordem ainda não alcançada. Essa ordem era aquele sistema genuíno embora futilmente criado pelo mecanismo da vítima substituta. Tudo isso compõe um relato análogo de como o Criador promove o ser. Isso nos solicita a apreender dois movimentos dinâmicos, cada qual em oposição ao outro, mas não no mesmo nível, pois um emergente e ou outro dispersivo, formando simultaneamente uma única dinâmica.

Como fica, então, o relacionamento entre ordem e desordem na pólis humana, nessa forma apocalíptica repristinada?

James Alison

Madrid, set/out 2018.

O aclamado teólogo inglês James Alison é um dos mais abalizados intérpretes das obras de Margaret Barker e de René Girard. E estes são os dois principais pensadores a que ele recorre no estudo da literatura apocalíptica judaica. Nesta palestra, ele demonstra o potencial explicativo da Teologia do Templo e esboça seus pontos de convergência com a teoria mimética. Assista:

Palestra realizada em 21 de março de 2019 no Espaço Cultural É Realizações.

Para saber mais sobre as obras acesse:

Introdução ao Misticismo do Templo

Introdução à Teologia do Templo

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